As criptomoedas atreladas ao dólar – stablecoins conhecidas como “dólar digital” – podem se tornar em poucos anos um dos maiores financiadores da dívida pública dos Estados Unidos, segundo Roberto Campos Neto, ex-presidente do Banco Central e hoje vice-chairman, chefe global de políticas públicas e economista-chefe do Nubank.  

Em entrevista ao videocast Perspectivas, do InvestNews, Campos Neto explicou que a dívida americana é hoje de US$ 37 trilhões e que há atualmente cerca de US$ 300 bilhões em stablecoins atreladas ao dólar. Instituições financeiras e do setor de cripto estimam que, até 2030, o volume de dólar digital pode chegar a US$ 1 trilhão. 

“Se isso se concretizar, emissores de stablecoins podem se tornar o segundo maior detentor de títulos da dívida dos EUA”, disse o executivo do Nubank.

Hoje, 99% das stablecoins do mundo já são atreladas ao dólar. E uma legislação recente dos Estados Unidos deram um impulso adicional ao sistema financeiro digital. O Genius Act, aprovado em julho deste ano, é o primeiro marco regulatório federal para stablecoins dos EUA. Entre outros pontos, a lei determina que emissores domiciliados em solo americano mantenham reservas em ativos seguros e líquidos em dólar, como títulos do Tesouro, na proporção dos seus “dólares digitais”.

“Por isso, quanto mais stablecoins houver no mundo, mais demanda por dívida americana haverá”, disse Campos Neto. “E quanto mais demanda por dívida americana, menos os Estados Unidos dependerão da China, hoje um dos grandes compradores dos seus títulos.”

Quando as finanças encontram a geopolítica

O Fed (Banco Central dos EUA) e as instituições financeiras americanas são os maiores detentores de papéis do Tesouro dos Estados Unidos, seguidos por bancos centrais e instituições financeiras de outros países. O Japão é o principal financiador internacional da dívida dos EUA, com quase US$ 1,2 trilhão em títulos em julho de 2025. Reino Unido (US$ 899 bilhões) e China (US$ 730 bilhões) disputam o segundo lugar. 

Embora ainda não esteja no topo do ranking, o volume de títulos da dívida americana detidos por emissores de stablecoins já supera o de países como Alemanha, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. 

“Os EUA têm incentivado o uso de stablecoins. É muito estratégico para eles”, disse Campos Neto. “O país entendeu que se o mundo inteiro adotar stablecoins lastreadas em um pedacinho de sua dívida, haverá mais demanda por esses títulos” – e sua dependência em relação à China, vista como um competidor, diminuirá.

O papel das economias emergentes

Campos Neto destacou que o avanço das stablecoins é especialmente acelerado nos países emergentes, com um crescimento estimado em 300% ao ano. É um movimento impulsionado pela procura de proteção cambial em lugares onde a moeda doméstica é instável.

“A verdade é que as stablecoins são uma forma muito barata de ter uma conta em dólar”, disse. Mesmo em países como o Brasil, abrir uma conta em moeda estrangeira demanda um certo volume de recursos e não é trivial.Dados da plataforma Nubank Cripto indicam que o USDC – uma das maiores stablecoins de dólar do mundo – já é o segundo ativo mais escolhido por clientes para sua primeira compra de criptomoedas. Um em cada quatro clientes do banco optam por iniciar sua jornada no segmento de cripto com os “dólares digitais”.

Os desafios dos criptoativos que o Drex resolve

No videocast Perspectivas, além de explicar a importância das stablecoins na geopolítica, Campos Neto detalhou o que acredita ser a nova fronteira do dinheiro: a tokenização. 

No Brasil, o Drex – em desenvolvimento desde 2019 – foi a solução proposta pelo Banco Central para unir as carteiras digitais ao sistema financeiro. Embora seja conhecido como “real digital”, o Drex será, na verdade, uma espécie de depósito tokenizado: os bancos irão bloquear um depósito tradicional e emitirão reais digitais a partir dele.

No sistema financeiro tradicional, os recursos mantidos pelas pessoas são usados pelos bancos para conceder empréstimos. E por herdar a regulação dos depósitos tradicionais, os depósitos tokenizados no âmbito do Drex preservarão essa capacidade de crédito dos bancos – evitando a desintermediação financeira, segundo Campos Neto.

É diferente de quando o dinheiro migra para stablecoins, porque esses recursos não são usados em empréstimos. Em larga escala, isso poderia reduzir a capacidade de financiamento e de crescimento de uma economia. “O grupo que desenhou o Drex foi visionário, porque em 2019 ninguém imaginava que haveria esse problema”, disse.

Em entrevista ao videocast do Nu, Campos Neto comentou, ao lado do CEO do Nubank, David Vélez, sobre como a instituição aproveita inovações regulatórias para oferecer melhores produtos e serviços.  “A intersecção entre tokenização, open finance e inteligência artificial é muito relevante, e só o Brasil terá no futuro próximo”, afirmou Campos Neto. “Ela ainda não foi totalmente compreendida, mas vai gerar muito valor à frente”.